O Projeto Street Art Against Covid

Astreet art é um movimento artístico que, não sendo propriamente novo, adquiriu uma especial visibilidade e simbologia desde o início da pandemia. Durante os dois confinamentos nacionais, e nos meses de incerteza que entre eles mediaram – e que se lhes sucedem ainda – a street art converteu-se gradualmente num elemento familiar, marcando a paisagem da cidade contemplada com renovada atenção, enquanto adaptávamos o olhar a horizontes necessariamente mais próximos.

Em abril de 2020, fomos surpreendidos por um mural de Hazul numa artéria banal da cidade alta. A inesperada manifestação artística restaurou a esperança num dia de números trágicos. Um ano volvido, a visão repetiu-se, noutro local mas em igual contexto, desta vez indicando-nos que íamos no caminho certo. O que se passara entretanto?

Os investigadores do projeto StreetArtCEI, desenvolvido desde 2017 pelo CEI – Centro de Estudos Interculturais do ISCAP, Politécnico do Porto, decidiram utilizar o seu conhecimento do terreno para catalogar os percursos da street art surgida nas ruas do Porto durante as cronologias da pandemia e do confinamento. Assim nasceu Street Art Against Covid, nesse abril de 2020, um projeto que continuará ativo até ser declarado o final da pandemia. A experiência de trabalho de campo, recolha e catalogação de imagens e criação de rotas, obtida em StreetArtCEI, ganhou, em Street Art Against Covid, um caráter de missão. A missão de mostrar ao mundo, através do alcance internacional dos canais digitais do projeto, que a street art não cessou de se reinventar nas ruas do Porto e que o potencial turístico da cidade está mais vivo do que nunca.

Com este objetivo, Street Art Against Covid localizou, fotografou, catalogou e mapeou as manifestações de street art criadas durante os meses de confinamento, bem como as intervenções alusivas à crise pandémica, neste caso sem balizas temporais. No Verão de 2021, o website de Street Art Against Covid, de acesso livre e em constante atualização, contava com mais de 300 imagens, distribuídas por cerca de 80 Pontos de Interesse (POI), organizados em 7 rotas: Cidade Alta, Boavista, Centro Histórico, Porto Oriental, Rio Douro, Matosinhos e SNS (intervenções de homenagem aos profissionais de saúde). As rotas são traçadas sobre mapas online, onde cada POI abre para uma galeria das imagens aí localizadas, e todo o projeto está acessível a partir de www.streetartcei.com 

Enquanto projeto académico imerso nas contingências da história, Street Art Against Covid venceu o Prémio Santander Universitário UNI-COVID19, promovido em resposta à emergência provocada pela crise, de modo a apoiar as iniciativas com impacto social que a comunidade académica desenvolve neste contexto adverso. Este reconhecimento institucional permitiu concretizar a ideia surgida na primavera de 2020, mas ao mesmo tempo motivou também novas e desafiantes reflexões.

A street art tem despertado a atenção de instituições e de investigadores das mais diversas áreas, estabelecendo em seu redor uma rede de interações paradoxais com entidades públicas e privadas. Desta complexidade advém grande parte do seu fascínio. Comecemos pelo facto de muitas das obras coligidas em Street Art Against Covid possuírem um caráter duplamente transgressivo, pois são (segundo o discurso vigente) formas de arte ilegais que, ao mesmo tempo, resultam de violações do confinamento por parte dos seus autores. De igual modo complexo é o facto de o acervo digital conservar em paridade tanto as obras aprovadas, comissionadas e assinadas, como as obras ilegais, livres e anónimas.

O trabalho de campo da primeira etapa de Street Art Against Covid trouxe ainda à tona uma terceira camada de transgressão, sob as duas já mencionadas. A radical desertificação das ruas durante o primeiro confinamento suspendeu momentaneamente a vigilância entre pares que sustenta os poderes atuantes na street art. Isso proporcionou ações de iconoclastia por parte daqueles que conseguiram transgredir, triplamente, a lei, o confinamento e a hierarquia. Obras aparentemente intocáveis de autores reconhecidos foram alvo de bombing e grafitadas. Traços desconhecidos e/ou rudes, de principiantes, surgiram em espaços de grande visibilidade, até aí feudo dos consagrados. Por outro lado, também os grandes nomes da street art, suspensos os compromissos internacionais instagramáveis, voltaram-se para a cidade de origem e voltaram a ilustrá-la em quantidade e qualidade, tanto durante como logo após o confinamento, nem sempre nos locais mais habituais. E logo se repôs a contraditória normalidade de que Street Art Against Covid é testemunha.

Street Art Against Covid – tal como StreetArtCEI, o projeto que o aloja – prospera dentro de vários paradoxos construídos por si mesmo, pois é um projeto desenvolvido por uma instituição pública que, ao mesmo tempo, colige, preserva e legitima produtos culturais que danificam o património público e privado. E, contudo, despertou o interesse dos media e foi premiado por uma instituição bancária. Levou a que instâncias de poder local investissem na criação de percursos de street art, ou seja, em obras cuja eliminação essas autoridades patrocinam em simultâneo. Este paradoxo das instituições não faz mais do que reproduzir a propensão cultural para a domesticação do marginal, paradoxo do qual todos os intervenientes no projeto estão bem cientes. Street Art Against Covid é, por isso, um projeto intercultural, que se desenrola numa zona de fronteira entre o legal e o ilegal, onde os investigadores desempenham o papel de mediadores, percorrendo campos discursivos em interseção permanente.

Na realidade, há muito que a street art é um território de paradoxos, enquanto arte pública cada vez mais privatizada, símbolo da lucrativa mercantilização das culturas marginais e do hiperconsumo das culturas visuais, que a internet faz correr à velocidade da luz. A simultânea elitização e massificação da street art contradiz-se constantemente: a transição do graffiti ilegal para o graffiti artístico; a metamorfose dos vândalos perseguidos em artistas consagrados; a performatividade mediática da transgressão; a segurança, vigilância e controlo (censura?) na produção de obras de rua que logo transitam para galerias e outros espaços de experiências museológicas pop.

Também os investigadores de Street Art Against Covid estabeleceram uma ligação tão afetiva quanto analítica entre a prática artística e a prática académica. Recordamos os murais políticos do pós-revolução e os políticos anti-murais que, ainda não há muito tempo, pediam a prisão para os street artists. Testemunhamos a aceitação passiva da publicidade omnipresente por aqueles que consideram a street art uma invasão. A street art é uma dádiva à cidade, mas o simbolismo da dádiva – recordemos Marcel Mauss – provoca tanto atração como repulsa, tal como tudo aquilo que nos arranca do torpor e nos desperta para a necessidade de intervir no espaço (ainda?) público. Por isso, a street art é sempre política, nem que seja pelo fato de ser ontologicamente transgressiva e nos obrigar a olhar, ver e reparar naquilo que deveria ser invisível.

O poder da arte que inscreve a estética – com a sua ética muito própria – na cidade é anónimo, volátil, livre e, por isso mesmo, ameaçador para as hegemonias. Daí nasce a obsessão destas pela regulamentação, pela censura, sob a forma de ações de limpeza urbana, de imposição da parede inócua, de áreas reservadas, de mensagens higienizadas. Há espaço para o mural privado, a imagem remunerada permanece no tempo, mas a obra livre é apagada na manhã seguinte. Para empregarmos as categorizações de Émile Durkheim: a arte privada privilegia o sagrado monumental, ao passo que a arte pública se exprime no quotidiano profano.

O carácter político, subversivo e essencialmente livre da comunicação através da street art assemelha-se a uma dark web ou ao sistema alternativo de comunicação W.A.S.T.E., em The Crying of Lot 49 de Thomas Pynchon. A street art que se ficcionalizou n’O Franco Atirador Paciente de Arturo Pérez-Reverte e se canonizou com Keith Haring e Jean-Michel Basquiat, é usada pelos media em peças tantas vezes (des)informativas, é explorada pela publicidade, pela moda e pelo turismo, aos mesmo tempo que ainda enferma de preconceitos arcaicos de violência e misoginia. Com efeito, tarda a demolir o ghetto onde o patriarcado tenta encerrar as artistas, dentro do ghetto mais lato onde a sociedade tenta encerrar a street art.

A street art, enquanto alternativa potencialmente democrática e participativa, é um agente crítico, transformador e dinamizador da cidade, evidente em locais tão díspares como Lisboa, São Paulo, Berlim, Porto, Jacarta, Hong Kong e Istambul, num paradigma geográfico em expansão global. Através da street art, a cidade é personificada como falante e metaforizada enquanto discurso e espaço de comunicação. E, paradoxalmente, tanta da marginalidade associada à street art decorre do secretismo da atividade, do mutismo dos autores, da sua linguagem impenetrável e imprevisível. Também paradoxal será a desmaterialização da street art – por definição forjada no mais concreto dos materiais: a cidade – ao tornar-se bem de consumo global através da internet, estrategicamente utilizada por inúmeros artistas graças à visibilidade que proporciona. Por natureza, o caráter efémero da street art desde sempre recorreu à reprodução fotográfica como forma de preservação e difusão. As redes sociais vieram proporcionar uma forma ainda mais direta e eficaz de partilha, agora por via do mais massificado dos meios. Facto é que, hoje em dia, a street art existe numa realidade tão material quanto virtual, tão digital quanto física, numa tendência exacerbada durante as restrições impostas sob o pretexto da pandemia.

Street Art Against Covid é também ele um projeto digital, que transporta as imagens do muro para o ecrã. Mas nós sabemos que a propagação viral da street art nas redes sociais desperta nos utilizadores a vontade de explorar os territórios reais que a acolhem. E é esse o grande objetivo-missão de Street Art Against Covid, razão pela qual o repositório de imagens está organizado em rotas praticáveis, turísticas e populares até, se assim o quisermos entender. O virtual materializa-se quando o utilizador da web se transforma em utilizador do espaço urbano. Ao atrair visitantes, a street art patrocina a recuperação da cidade, renova o interesse estético e a dignidade de áreas degradas e/ou periféricas e contribui para a resistência do Porto às sucessivas crises, das quais a crise pandémica foi só a mais recente.

Entre um confinamento e outro, entre um mural e o seu duplo, a equipa de Street Art Against Covid decidiu desconfinar a investigação e disseminar os seus projetos nas ruas. Para além da missão científica de divulgar a street art e da missão utilitária de motivar os visitantes, queremos que os textos aqui publicados sejam lidos livremente pelo Porto, lado a lado com as obras e os artistas que nos inspiram. Aquele mural de Hazul foi um mural de abril, não há coincidências.

Clara Sarmento

clarasarmento@gmail.com

Porto, Agosto de 2021

Leave a Reply