Um projeto de stencil como veículo de comunicação.

Entrevista a O Filho Bastardo

Sexta-feira, dia 13 de Agosto de 2021, Jardins do Palácio de Cristal

JK- Queria pedir-te que começasses por nos falar sobre o teu percurso artístico, cultural, académico…

FB- Pronto, vou tentar contextualizar um bocadinho. Desde muito novo comecei a escrever poesia… Aquelas quadras básicas de quem tem 13 ou 14 anos, não é? Mas desde muito cedo tive essa apetência, essa vontade. Mais tarde, convivi muito dentro da cultura do hip-hop, do rap, e da música, e, portanto, isso esteve sempre presente na minha vida, e por associação, um bocadinho a lógica do graffiti, da intervenção nas ruas, do pensamento revolucionário e de intervenção social. Estes elementos estiveram sempre muito presentes, e já nessa altura fiz umas experiências de umas letras para um amigo que cantava umas coisas, mas que nunca chegou a lado nenhum, e fiz umas experiências com o stencil, influenciado pelo aparecimento das redes sociais e da explosão do Banksy.

(…) Entretanto apareceu também na minha vida a fotografia. Já tinha aparecido antes, por influência familiar, mas a prática começou mais tarde. Então eu criei um projeto, já com este nome, que era um projeto digital, na altura numa rede social, que consistia em juntar fotografia com texto poético, ou na minha opinião, poético (…).

Mais recentemente, comecei a conviver novamente com artistas de rua, com graffiters, com muralistas, com… Hoje em dia há todo um arsenal de catálogos de artistas de rua, para mim continuam a ser todos artistas de rua, desde muralistas aos de intervenção urbana, de arte urbana, a Street Art, bem, enfim! Comecei a conviver mais próximo com este tipo de pessoas, o que me levou a fazer algumas aventuras na rua, muito pequeninas na área do vandal, e isso levou-me pensar se eu não podia fazer renascer o meu projeto de fotografia com a poesia, mas em vez de formato digital, na rua. (…)

A ideia era fazer regularmente paste-up, e, ao contrário do que eu fazia anteriormente, que era os textos solidificarem a interpretação da fotografia ou vice-versa, aventurei-me a diversificar a interpretação. Ou seja, as pessoas vulgarmente dizem confundir, mas não! O que eu pretendia mesmo era diversificar a interpretação, não ser literal a fotografia com o texto ou o texto com a fotografia…

JK- Multiplicar as interpretações?

FB- Exatamente! Dar abertura para várias interpretações e depois, de uma forma mais esporádica, criar frases com algum sentido poético, mas mais de intervenção, e em stencil. Que foi o que eu fiz de facto, no início. Só que uma coisa levou a outra e fui convidado pelo STRA para fazer aquela intervenção no muro de Belas-Artes (…). E a partir dai, a partir daí, com a convivência com ele, comecei a entusiasmar-me muito mais pela parte do desenho, pelo stencil, e comecei a deixar de parte o paste. Lentamente, não foi nada programado, foi acontecendo. Comecei a perder mais tempo… A perder…A dedicar mais tempo à criação de desenhos. Nunca perdi totalmente a questão das frases, em todos os meus trabalhos eu acho que a imagem e o texto se complementam de alguma forma, embora esporadicamente eu tenha feito, e ainda faço, alguns trabalhos que são só desenho e alguns que são só frases. Ainda há pouco tempo fiz um que era só uma frase em stencil negativo, uma sugestão tua de há muito tempo! (…)

JK– Fala-nos então da tua prática específica do stencil. O porquê de usares stencil, o que é que te atrai na sua prática? Também que descrevesses as particularidades da tua técnica.

FB- Sim. Então… Uma das coisas que a experiência me foi dando foi: percebi que o stencil é uma coisa muito mais duradoura na rua, do que o paste-up; depois a aventura do trabalho na rua, em stencil, puxa mais pela tua adrenalina do que o paste-up, é mais exigente quer do ponto de vista da aplicação da técnica quer da tua concentração mental, do teu foco. Isso dava-me mais satisfação, dava-me mais prazer, chegava mais concretizado a casa do que quando fazia o paste.

Depois, relativamente à minha técnica, mais uma vez, eu evoluí muito desde este encontro com o STRA, com esta convergência de caminhos. Como eu usava muito as letras e as letras implicam fazer muitas pontes, muito aquela fonte do stencil tradicional, com ponte para permitir ter a letra, ele falou-me do [Teachr1] dos Estados Unidos, que usava uma técnica com uma rede que andei a ver e a investigar, e é o processo que uso agora. Relatado do início: Eu uso como base para o meu trabalho as fotografias, que eu trabalho em Photoshop. (…)

Inicialmente eu dividia o ficheiro de Photoshop em folhas A4, imprimia, chegava a casa, colava as folhas todas para fazer o desenho e depois cortava-o em mesa de corte num cartão com um bisturi normal de corte de papel. (…) Com esta técnica da rede eu deixei de fazer isso e comecei a fazer outra coisa: Eu compro folhas de papel maiores, A0. Junto o número de folhas que precisar, mas normalmente uma ou duas chegam para o tamanho que eu trabalho. Projeto através do computador, com um projetor, numa parede. Tenho um papel na parede, passo o lápis por cima da forma geral e depois introduzo, então, os tais detalhes únicos, meus, no desenho já na mesa com o lápis.

(…) Depois eu corto o papel e depois vem a técnica da rede. Eu corto o papel sem as pontes, portanto ficam peças separadas, eu ponho-as nas posições que elas precisam de estar todas. E com a rede por cima, colo com cola de papel à rede, então todas as peças ficam coladas à rede e não precisam de pontes entre elas. Ok? Então consigo fazer letras como fossem letras impressas em vez de serem letras de stencil tradicional.

É uma técnica que sai um bocadinho mais cara, a rede não é propriamente barata, mas bem utilizada, compensa. É uma técnica que tem vantagens no trabalho de rua porque te obriga a usar menos layers e papeis e na maior parte das vezes é um trabalho único, às vezes tem duas ou três camadas porque pode ter cores diferentes, mas o grosso é uma coisa única. Por outro lado, dá mais nas vistas. Usas uma coisa muito maior colada na parede, e quando estás a fazer chama mais a atenção. Portanto há aí uma gestão. Quando é demasiado grande, eu divido em dois para não ter tudo colado na parede e ser mais fácil de passar despercebido, digamos assim.

(risos) (…)

JK- Falando agora sobre os temas do teu trabalho. Presentemente muito do teu trabalho foca-se em temáticas sociopolíticas. Como tal, sentiste que esta pandemia afetou a perceção pública da esfera socio política? E de que forma é que isso afetou o teu trabalho? Se é que afetou…

FB- Olha é interessante que me perguntes isso. Primeiro, sim! Eu acho claramente que esta pandemia afetou a forma como as pessoas se relacionam com a política. Como se costuma dizer, quando te vão ao bolso tu… Não foram propriamente ao bolso das pessoas, mas foram à liberdade, à liberdade de movimentos, à liberdade de pensar, de pensar não… Mas como as pessoas não estão socialmente, não trocam tantas ideias, e portanto, as pessoas passaram a viver muito na sociabilidade digital. E também tiveram tempo, e tu estando fechado em casa tens menos preocupações a outros níveis, tens mais tempo para ler, e para ter acesso a informação sobre determinados assuntos que nas circunstâncias normais não tens. Nas circunstâncias normais tu não lês tantas noticias, não vês tantos noticiários… E nesta fase, fechadas em casa, as pessoas tiveram mais acesso a um conjunto de informações através da internet… E quando assim é, a relação com a política e com a sociedade muda, e muda de uma forma muito evidente…

(…)Em relação ao meu trabalho, ao contrário do que aconteceu com a maior parte dos artistas, ainda ontem falava com 2 amigos artistas sobre isso… Para mim foi ótimo! Porquê? Porque eu não faço isto assim há quanto tempo quanto isso, e porque eu também estive em teletrabalho durante o dia, e não só foi uma maneira de sair a rua, espairecer e manter alguma sanidade mental, não andava ninguém na rua, e, portanto, era espetacular pintar na rua porque tu sentias-te absolutamente seguro, a que horas fossem, de que maneira fosse. (…) A dificuldade agora está a ser lidar com o ruído na rua quando trabalho, a minha adaptação à normalidade é que está a ser difícil. Qualquer barulho, qualquer carro me põe em sobressalto, quando não há necessidade nenhuma disso. Mas pronto isso é uma coisa que eu terei que aprender a lidar. (…)

JK- A próxima questão é um bocado mais complicada: desde há uns tempos que a forma como a Câmara Municipal lida com o graffiti, a Street Art, e com as intervenções públicas não comissionadas tem estado um bocado na conversa, e naturalmente, como tu trabalhas muito com esses temas, e também porque é um mecanismo que te afetou diretamente, queria perguntar se há alguma coisa que queiras falar sobre como é que isso redirecionou, afetou, ou até alimentou o teu trabalho.

FB- Sim, afeta sempre! Se tu és confrontado com uma determinada postura, com a qual tu não concordas, tendes a concentrar mais os teus esforços nesses temas.

E portanto, se calhar desviou-me de falar de outros temas mais abrangentes, que na altura eu podia ter falado, para me concentrar em expor aquilo que a Câmara está a fazer, e simbolizar a Câmara na pessoa do senhor presidente. Não quer dizer que eu acho que é ele que dá todas as ordens, e com certeza não é ele que decide que trabalhos é que se limpam e que não se limpam, mas as linhas gerais disso e o processo ideológico é ele que tem a obrigação de fazer passar às estruturas que depois o aplicam, dentro da Câmara.

E eu acho que a primeira coisa que mais me revoltou foi sentir que havia… Uma curadoria de arte ilegal. Que é tu fazes 2 trabalhos diferentes na mesma parede, ao mesmo tempo, e um é apagado e o outro não é. (…) Eu sei que não foi o presidente que foi lá apagar, de certeza! Mas as linhas orientadoras deste processo são dadas pelo vereador, e o vereador tem de responder ao presidente, e, portanto, ele tem de tomar conhecimento do que se está a passar a este nível… Se ele quiser limpar as paredes todas ele tem todo direito de as limpar…

JK- Mas então que as limpe a todas?

FB- Exatamente! Ou então que não as limpe, e que deixe isso para os privados, para os donos dos muros, não é? Que limpe apenas aquelas que pertencem à Câmara. Que faça como ele quiser, mas dentro da lei! Com respeito moral e ético por aquilo que são as opiniões dos artistas, que é uma coisa que não existe! Porque sempre que se faz uma crítica ao trabalho da Câmara, mesmo que não seja insultuoso… (…)

Só para acabar, queria dizer que é muito importante que os trabalhos continuem a ser apagados que é para nós termos onde pintar. Se houver uma Câmara demasiado permissiva, um autarca demasiado permissivo nas paredes, deixa de haver paredes e a gente deixa de ter onde expor os nossos trabalhos. (Risos) (…)

JK- E qual achas que é a relação desse lado ilegal com o lado legal destas práticas? No geral, ainda não há uma aceitação total a uma prática não legal, muitas vezes vista como puro vandalismo.

FB- Há de facto, muitas vezes, uma crítica social muito importante, por parte das pessoas ao lado mais vandal desta área. Eu não gosto muito de lhe chamar vandal, gosto mais de lhe chamar juvenil. A cena de começar com a assinatura e com o tag, que na opinião da maior parte da população é uma coisa feia, que não é bonita, devia ser explicado às pessoas que nenhum artista de rua, nenhum muralista, nenhum grande pintor começou por fazer grandes obras. As coisas têm de ser treinadas e tem que se começar por algum lado. E desse leque de 50 miúdos que faz agora uns tags, há dois ou três que vão ser os grandes artistas de rua das próximas décadas. É uma chatice ser na rua? É. E aí é que ,se calhar, a Câmara precisa de intervir mais. Os municípios precisam de limpar mais essas paredes, mas também dar mais oportunidades a esses miúdos para se mostrarem, e criar mais eventos onde eles possam praticar e expor o que já fazem, melhor ou pior. (…)

JK- Bem, penso que está tudo! Muito obrigado por este momento!

FB- Eu é que agradeço a esta entrevista, que gosto muito de falar!

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